Realidade Imaginária – Jornalismo e Cinema

        Por Alessandro Lo-Bianco 

 A história e seu trajeto com início, meio e fim, assim como o processo da vida, a certeza da morte e o medo do inesperado, estas estruturas lineares, não são as únicas formas de escrita que o cinema pode alcançar.  Ao contrário, a ousadia da subversão do tempo, a mistura do sonho com a realidade são os maiores fascínios desta linguagem cinematográfica. Esta capacidade de ultrapassar limites humanos gera interpretações infinitas, tanto em relação à imagem quanto ao sentido de sua narrativa. Afinal, um filme é composto por fragmentos que, separados, talvez não façam sentido. Filmar não é simplesmente reproduzir ideias contidas num roteiro, é mais do que isto. Tem dinâmica, é orgânico, algo vivo, que respira, se movimenta, podendo assumir formas diversas, tanto em relação à sua escrita quanto à sua leitura. A ousadia e a liberdade de criação e interpretação que conferem ao cinema uma magia tão peculiar, já não podem ser estimuladas na produção jornalística.  Por mais que se diga que a objetividade não existe, que é um mito, ela esta ali, escancarada no texto. A subjetividade existe, é claro, na maneira como cada repórter conta sua história e, sobretudo, nos donos e editores dos veículos. Uma subjetividade que não se manifesta necessariamente pela deformação intencional dos fatos, mas por ênfases e omissões. Basta perceber que dois ou três textos sobre o mesmo assunto nunca serão iguais, porque por trás de uma narrativa há uma vivência individual e uma visão de mundo que obviamente vem à tona quando relatamos um fato.

     Assim como um repórter escreve para um público (seja ele qual for), um cineasta também faz filmes para os outros. Nenhum cineasta faz filme para si próprio. Cinema e jornalismo são duas formas de diálogo. Essa proximidade entre as duas linguagens existe a partir do momento em que o cineasta e o jornalista conseguem falar a outros que não unicamente para pessoas de seu convívio. Este mistério que aglomera o grande público levanta sempre novas questões em torno da linguem visual e seu poder além da simples comunicação.  Uma sintonia que nos torna mais vivos no mundo, mais humanos ao dividirmos estas histórias com povos tão distantes e distintos – não apenas geograficamente – como africanos, orientais, jovens e velhos. Um filme é uma imagem da realidade e não a vida em sua totalidade. Uma notícia também. Ela é praticamente uma descrição visual do que o repórter presenciou.  Mas a realidade não esta naquele texto. E não esta em lugar nenhum.  A realidade do fato só existiu no momento em que ele aconteceu.  No cinema, a discrição de uma imagem da realidade é semelhante à notícia. Cada uma com seu ponto de vista. Mesmo mantendo uma relação objetiva com o mundo real que lhes serve de referência, , tentando ser seu reflexo fiel, o cineasta e o jornalista se deparam coma impossibilidade desta ilusão.  No entanto, a realidade do jornalista existiu, ao passo que a do cineasta foi criada e existe apenas na ficção do que foi criado no filme.  Uma ficção fabricada a partir dos elementos  extraídos do mundo real, formando uma realidade puramente imaginária.

         A matéria prima do cinema torna-se a imagem que nos dá uma percepção imediata do mundo.  A imagem cinematográfica existe ao lado do mundo denominado real.  O fato de alguém autorizar essa significação é suficiente para nos dizer  que não estamos na realidade, mas na versão do mundo da outra pessoa. O crítico Jean – Claude Bernardet diz que filmar é uma atividade de análise. “Filmar então pode ser visto como um ato de recortar o espaço de determinado ângulo, com uma finalidade expressiva.” As imagens filmadas são colocadas umas após as outras.  A reunião das imagens – a montagem – é uma atividade de síntese.  São processos que deixam claro que a linguagem cinematográfica é uma sucessão de escolhas: escolhe-se filmar o ator de perto ou de longe, em movimento ou não, deste ou daquele ângulo. Assim como os montadores ou produtores de um filme tem uma função fundamental, organizando e dando sentido às sequências de imagens e cenas que compõem e contam suas histórias, os jornalistas têm um pouco de cineastas. De alguma maneira e com seus métodos específicos, são montadores do tempo quando editam seus fatos e selecionam o que será notícia. Tanto para jornalistas quanto para cineastas, normalmente o que muda é o enfoque e o objetivo de suas abordagens. De todos os elementos que tornam a realização de um filme algo tão particular, possivelmente a montagem seja seu elemento mais específico.  A montagem não é simplesmente um trabalho de corte e colagem é, sobretudo, criação, fazendo malabarismos com o tempo e espaço, cenários e personagens. Ao escrever uma matéria, o jornalista, assim como o cineasta, faz escolhas. Decide o que é mais relevante, escolhe os entrevistados que entrarão no texto e situa o leitor no tempo e no espaço.  O texto jornalístico também requer um cuidadoso trabalho de montagem.

         O homem é plenamente capaz de imitar, de reproduzir as formas do universo e inventar.  A intercessão entre a realidade e sonho é fonte inesgotável de toda criação artística.  A imagem em movimento suscita, inúmeras vezes, um sentimento de realidade no expectador, mas o que aparece na tela é um simples aspecto da realidade, uma realidade estética resultante da visão eminentemente subjetiva e pessoal do realizador. Realismo e idealismo confundem-se e opõem-se, diminuindo a distância que os separa.   Cinema é imagem por natureza. E a imagem, por sua vez, é realista por natureza. O cinema possibilita dois tipos de realismo: o realismo da ficção e a ficção realista.  Ou seja, o cinema nos faz ver de forma realista mesmo o que é ficção.  Talvez por isso, os filmes que tem o jornalismo como tema sejam os mais fiéis à realidade, já que o objetivo final é sempre a busca da verdade.  Por mais realista que seja, o cinema é uma expressão da imaginação. Assim como na literatura, em que é possível criar algo independentemente de um fato da realidade cotidiana, no cinema isto também é possível porque ele é, antes de tudo, a arte da ilusão. E o que nos faz acreditar nisso é o distanciamento entre o imaginário e o real que o cinema é capaz de proporcionar através da imagem. Jornalismo e cinema são duas linguagens aparentemente distintas. Mas tem muito em comum na forma de revelar e mostrar a realidade. Na notícia, a verdade (leia-se o fato mais importante do filme), geralmente fica para o final. Quando o cinema faz uma narrativa histórica de um fato, ele esta sendo jornalístico por natureza. Assim como uma notícia, o filme é construído para ser entendido. Em ambos os casos, a linearidade dos fatos é fundamental para compreensão da história.  No cinema a narrativa pode não ser linear, o que de fato acontece com frequência.  Quando aletrada, a sequência de um filme jornalístico não chega a ser danosa, pois no cinema o flashback, os cortes e os planos são recursos de linguagem que facilitam a compreensão e tornam possível a desconstrução da narrativa. Na produção da notícia escrita ou falada isso é mais complicado, por ser tratar de um produto imediato do dia a dia, Deve ser o mais simplificado possível para entender às expectativas do público. Sob este ponto de vista o cinema leva vantagem, porque a imagem não precisa ser decodificada, ao passo que a palavra sim, pois se obriga a ser construída linearmente. O discurso verbal é um discurso se acréscimos – sujeito, predicado, complemento.  A imagem não é linear. Ela é uma oração em si própria, não possui uma referência senão a própria imagem. Por isso, o cinema é tão universal, especialmente porque a percepção visual ao redor do mundo varia menos que os idiomas.  Trata-se da linguagem do que é inerente ao homem, inclusive seus silêncios, pois um filme aceita estas superposições. A imagem se impõe, cobrindo tudo que não seja ela própria e seus silêncios.

         Um dos melhores filmes já produzidos em jornalismo, não em qualidade estética, mas em veracidade e proximidade do ritmo e das contradições de um jornal diário, é O Jornal ( The Paper, 1994), de Ron Howard. São 24 horas na redação de um tablóide de Nova Yorke – onde tablóide significa sensacionalismo. Lá estão presentes os tipos clássicos do jornalismo: o idealista esforçado, o veterano desencantado, a redatora-chefe inescrupulosa, a repórter grávida que trabalha  quando deveria estar em casa e aquele redator chato que poe o nome na cadeira. A história gira em torno de um crime cujos suspeitos são dois morenos negros. No desenrolar da trama, consegue-se provar que os garotos são inocentes. Mas para o jornal é tarde demais. A edição já esta fechada, com uma foto dos culpados estampada na capa. Heroicamente, o protagonista consegue chegar a tempo de parar as máquinas, não sem antes se estapear com a redatora-chefe que, mesmo sabendo da verdade, prefere manter uma notícia mentirosa. Mas a versão dos fatos é mudada na última hora. Considerando que os tabloides vivem do sensacionalismo e da para-ficção, o final não é nem um pouco verossímil.   O mais provável seria uma retratação na edição seguinte, o que certamente não teria repercussão alguma entre a opinião pública.  Quem acreditaria na inocência de dois menores negros e pobres depois que um jornal publicasse na capa uma fotografia dos culpados algemados.

Ao provar a inocência dos meninos, já não existe mais sensacionalismo suficiente para vender jornal. Daí o poder da imagem. O sujeito toma como verdade o que ele vê na tela. E é esta capacidade de produzir a impressão de realidade que torna o cinema, assim como a televisão, tão poderosos.  
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