Nova geração renova humor na televisão

Nova geração de humoristas faz sucesso em boa parte da programação da TV. Sem papas na língua, o formato tem suas raízes na Era do Rádio
 “Eu tenho um amigo que vai comprar cigarro, e quando ele vê a foto do pulmão podre, ele diz: não quero isso não, amigo, me dá outro. Não, o com câncer, não. Me dá o do feto aí, vai. Eu nunca vou engravidar mesmo!”
  • Com esta fala e um microfone, o humorista Rafinha Bastos arranca gargalhadas em uma apresentação de stand-up comedy(comédia em pé) que caiu na Internet. As risadas cessam e ele apronta outra tirada, depois, outra, e outra, e outra... Ultimamente, apresentações deste gênero de comédia vêm se popularizando no Brasil: no palco, diante da plateia, o humorista conta histórias prontas e improvisadas. A popularidade é medida pela repercussão na Internet: vira e mexe, vídeos de apresentações caem na rede e transformam um desconhecido num astro aplaudido ou criticado por milhões de pessoas. É uma faca de dois gumes que vem contribuindo para lançar novas caras e novas polêmicas nos meios de comunicação.
    Programas como “Zorra Total”, da Globo, “Pânico na TV!” e “CQC”, da Band, e “Comédia MTV” são exemplos de humorísticos da televisão aberta que se renovaram ao importar artistas lançados nos palcos de teatros e bares. Dos novos interlocutores é aproveitada a dinâmica das piadas espontâneas e a forma de falar descontraída e sem papas na língua. Muitos programas permitem palavrões e gírias, o que acaba atraindo o público jovem, que já conhece os piadistas dos vídeos que circulam na web ou de comentários ácidos feitos por eles nas redes sociais. A estudante carioca Taleska Roquete, de 14 anos, por exemplo, é fã de sites de piada e explica por que a maioria de seus colegas assiste aos novos humorísticos da telinha: “Eles conseguem fazer uma coisa séria virar engraçada. Além de criticar a política, deixando muita gente sem graça”. É a famosa saia-justa.
    Mas o humorismo de cara limpa – pelo menos aquele que se refere a uma pessoa no palco fazendo comédia para uma plateia – não é uma novidade do nosso tempo. Este tipo de humor se popularizou na Inglaterra no século XVIII e surgiu no rádio brasileiro ainda na primeira metade do século XX, sendo adaptado para a televisão na década de 1960. Chacrinha, José Vasconcellos (1926-2011), Chico Anysio, Costinha (1923-1995) e Jô Soares foram expoentes do gênero, protagonizando seus próprios shows stand-up nas diferentes mídias. Só que cada um à sua maneira.
    “Os shows do Chico Anysio não eram calcados nos personagens que ele interpretava na TV”, lembra Tiago Monteiro, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) e doutor em Comunicação pela UFF. “Era ele, um banquinho e um microfone. Outro exemplo são os discos do humorista Costinha chamados ‘O peru da festa’ – se aquilo não é stand-up comedy, não sei o que é! É evidente que a tradição americana do stand-up seja diferente, menos baseada na piada e mais na observação do cotidiano, mas eu vejo a encarnação brasileira do formato como sendo profundamente hibridizada com outras matrizes, como o teatro de revista, o rádio e a televisão”. O caso do “Peru da festa” – série de cinco discos – não é isolado. Nos anos 1960, era comum que comediantes já famosos por suas apresentações no rádio lançassem LPs com apresentações de piadas gravadas num palco diante do público, como também ocorria nos Estados Unidos. Muitos deles eram sucessos de venda, como “Eu sou o espetáculo”, do José Vasconcellos.
    A mistura entre formas de fazer humor no Brasil, como citou Monteiro, é antiga.  Os humoristas do rádio na Era de Ouro (de 1930 a 1950) eram importados do teatro ou do circo – o que influenciou bastante a forma de fazer rir nas frequências sonoras. Diante dos microfones, os locutores trocavam a gesticulação exagerada típica do humor de palco ou picadeiro por marcantes entonações de voz. Às vezes, um locutor, em programas de 30 minutos, era capaz de representar diversos personagens sem que o ouvinte reparasse que se tratava da mesma pessoa, como os gênios do programa “PRK-30!”, Lauro Borges e Castro Barbosa.
    Otelo Trigueiro, Megatério Nabábo d’Alicerce, Maria Joaquina Dobradiça da Porta Baixa são exemplos de personagens acolhidos pelos ouvintes e presentes no programa de Borges e Castro, que durou 20 anos, ficando famoso pelas piadas e trocadilhos ingênuos. “Vou passar a palavra ao repórter Otelo Trigueiro, o locutor da voz ‘lanteijolada’”, anunciou uma vez Castro Barbosa, na pele do português Megatério, num programa de 1948. E segue: “Um speaker que já foi convidado diversas vezes para trabalhar nos United States, mas que não aceitou por não se dar bem com o clima da Europa. Com a palavra, ele, o poliblota da voz”, e passa a palavra ao repórter, papel de Borges. “Poliblota não, rapaz, poligrota. Grota”. O locutor logo se desculpa em francês e comenta: “Bonita pronúncia” – quando é interrompido por risadas.
    Com a chegada da televisão ao Brasil, em 1950, foi necessário estabelecer uma nova linguagem que unisse a imagem, os gestos e a voz. Nesse momento, programas que faziam sucesso no rádio passam a ser vistos na TV, e a forma de humor circense que já existia na plataforma sonora passa a ser adaptada para a nova mídia.
    Um dos exemplos dessa transferência foi o “Cassino do Chacrinha”. Nascido na Rádio Clube de Niterói em 1943 como “O Rei Momo na Chacrinha”, o programa era uma espécie de picadeiro sem plateia estrelado por um homem só: Abelardo Barbosa (1917-1988), que logo depois adotaria o apelido que deu título ao programa. Durante alguns anos, Chacrinha conduziu o show de piadas e músicas sozinho, até começar a receber a companhia de convidados. Quando, após um tempo fora do ar, o “Cassino” foi para a TV Globo, na década de 1980, a estética do circo era visível: o apresentador, sempre fantasiado, chamava em voz estridente as atrações do centro do palco redondo, com a presença de vedetes dançando em arquibancadas com pouca roupa e uma plateia barulhenta que reagia às graças do protagonista. As cores vibrantes e a purpurina que decoravam o auditório eram apenas detalhes daquele circo carnavalizado que influenciou programas de auditório posteriores, como o “Domingão do Faustão”, até hoje no ar. O próprio Fausto Silva, aliás, chegou a conduzir shows de humor, nos anos 1980, como “Perdidos na noite”, um programa de recursos escassos, mas sucesso de audiência, que varava a madrugada na TV Gazeta (e depois na Band).
    Além da forma de apresentar a piada, também muda seu conteúdo. A historiadora Lia Calabre, da Fundação Casa de Rui Barbosa, explica que a representação do humor e o objeto do riso são mutáveis, ligam-se intimamente ao cotidiano. “As piadas envelhecem rapidamente, ou não funcionam fora de contextos específicos. A fonte de inspiração é muito próxima daquela que utilizamos ainda hoje na televisão: os problemas da cidade, a construção de figuras estereotipadas que representam o matuto, o morador de subúrbio, o pobre, o estudante, os políticos”.
    Mas, de uns tempos para cá, reforçar os estereótipos com as chamadas “piadas de mau gosto” é uma fórmula que não vem sendo mais tão bem aceita. É o contexto modificando o objeto do humor. A chegada do politicamente correto à cena, a partir de conquistas de direitos de minorias sociais desde os anos 1990, traçou limites tênues entre o que é engraçado e o que é agressivo – ser preconceituoso pode ser crime.
    Rafinha Bastos vem provocando a sociedade até o limite com piadas ofensivas. Sua conduta, tanto na TV quanto na Internet, já lhe rendeu alguns processos judiciais. É o humorista em constante conflito com seu contexto. Mas a polêmica existe e sempre existiu. O que varia, conforme disse Calabre, é o contexto. Nos tempos do Estado Novo (1937-1945), por exemplo, Aparício Torelly, o barão de Itararé – notoriamente engraçado –, levou uma surra de servidores da Marinha por comentários jocosos publicados em seu tabloide A Manha. No dia seguinte à sova, colou um recado na porta de sua sala: “Entre sem bater”.
    Hoje os métodos de repressão não são os mesmos usados por um governo autoritário, claro, mas o humorista ainda está sujeito a retaliações, mesmo em um território teoricamente livre como a web. É aí que entra em cena o bom-senso: quanto vale uma piada?
Nova geração renova humor na televisão Nova geração renova humor na televisão Reviewed by Alessandro Lo-Bianco on 06:33 Rating: 5

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